sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Quando a máscara branca torna-se negra.


Eu era um manifestante como tantos outros, exigindo pacificamente, meus direitos, eu abracei a ideia da igualdade, da mudança pacífica e fui as ruas, não apenas por 20 centavos, mas por um Brasil mais justo. 

Eu olhava outros cidadãos cantando, vibrando com alegria, com indignação, alguns com mascaras (eu inclusive), outros apenas com um sorriso. A máscara era não de um personagem, mas de uma ideia, de um "V" que feito Frankstein, se revolta contra aqueles que o criaram. Revoltado contra o "governo" que criou estas situações, achei que a mascara ajudava a exprimir uma ideia.

Nenhuma arma, apenas uma mascara plastica fina. O povo nas ruas... tudo pacífico, até que de uma rua lateral veio o barulho ritmado e seco, chamou a atenção, olhei a uns 20 metros, apareceu uma coluna de homens de cinza e preto, tomando a rua impedindo a passagem, como quem vê nuvens de tempestade, cinzas e pretas no céu, ja procurei um abrigo, bom sinal aquilo não poderia ser, achei uma árvore, pareceu um trovão, pensei durante alguns segundos se aquilo era real, pois pessoas gritavam sem violência, ninguém armado, e a tropa de choque, que chegou batendo nos escudos, simplesmente, abriu fogo.

O assobio daquela bala de borracha que deve ter passado a milímetros da minha orelha, e algo inesquecível, e o grito do jovem que foi atingido também ,a poucos metros atrás de mim. Ouvi mais tiros, e vieram as bombas de gas. Mulheres, que estava na manifestação, homens, pessoas com mais idade....sabe aquelas coisas que você não acredita, que parece ser um filme ou algo que você nunca vai ver no solo do seu pais, o governo simplesmente resolveu usar, tudo de não letal, em pessoas que,nada faziam alem de clamar por seus direitos. 

O cheiro do gás, virou o estomago, e o jovem que foi atingido no peito por uma bala de borracha estava caído gritando, surreal. Uma mascara, uma calça jeans com um moleton por baixo, uma mascara fina no rosto e uma camiseta.... A linha avançou alguns passos vi passar o primeiro "capacete branco" com cassetete nas mãos, sem conversa, sem perdão, seu "porrete" achou as costas de um rapaz que protegia uma garota próxima a ele, sabe aquela atitude romântica de abraçar alguém em uma hora de perigo, pois é ele fez bem e absorveu o golpe, que foi dado com gosto, e um sorriso pelo policial. 

O que ele fez? Por quê? Aquele segundo que passa o universo na sua mente, você vê tudo claro, sua percepção do tempo muda, saí do abrigo como muitos para longe da confusão. Ao passar ao lado do garoto no chão, vi a marca da bala de borracha no seu peito, ele estava chorando, gritando "Por que seus filhos da puta, sem violência caralho, o que eu fiz!" Peguei o garoto e o coloquei nos ombros, foi a primeira vez que pensei "você disse não ao sistema filho". 

Corri com ele nas costas por duas quadras, ouvi impactos nas portas de aço atrás de mim. Pedras? Não, a polícia atirando em mim que estava correndo, com um ferido nas costas. ( a cadência de fogo de uma 12 e lenta nunca corra em linha reta, movimentos erráticos te ajudam a não ser atingido). 

Parei em uma esquina, meus pulmões ardiam absurdo. Garoto, doí quando você respira? Não "irmão" (foi a primeira vez no ano que houve isso) que houve? Por que? (eu também queria saber, e não sei até hoje) Pressionei em volta da ferida, sem sinal de fratura, apenas o roxo do impacto e um pouco de sangue. "Saia daqui garoto"... foi quando escutei mais tiros. 

Ao contrario do que manda a cartilha minhas pernas correram na direção da "muvuca" e não para longe dela, uma quadra e meia acima, lá estava o "estado" em linha com seus escudos e gritos, "choque, choque, choque", gente no chão, alguns corriam para outras ruas e você via nitidamente pessoas de cinza e capacete branco, convergindo para cima delas, uma coreografia aterradora, alguém cai no chão e aqueles drones de cinza, erguem e baixam seus cassetetes, como se tivessem ensaiado, alguns correm outros de tanto apanhar, ficam estirados no asfalto, e os drones avançam para um, depois para outro, sempre pegando os desgarrados. 

Uma garota estava sentada, atrás de uma árvore, em pânico, fui até ela, ela estava em lágrimas, respirando mal por causa do gás, quem foi o filho da puta que acha que aquilo não é letal, a menina pelo visto tinha algum problema respiratório, deixada sozinha... Ninguem fica para trás. Ombro...correr, até fora da área do gás. Ja não são uma nem duas quadras, exame rápido, você tem problemas respiratórios? Ela moveu a cabeça acenando positivamente. Usa bombinha? Outro aceno positivo, um volume em seu bolso, bingo! Lá esta! dei a bombinha em sua mão.

Lembrei da mesma vontade de um bebe, que suga o seio da mãe, aquela garota com a bombinha. Haviam dois garotos proximos olhando...perdidos... Vocês ai, ajudem esta garota, continuem descendo a rua até não haver mais confusão, parem em um posto de gasolina que estiver aberto evitem avenidas, vão! e se foram os 3... 

O sangue começou a ferver. Por que? Soltaram um bando de cães , em cima de um rebanho... Mais barulho, gritos, e toda hora passava alguém sangrando, um supercílio aberto, uma boca um nariz, o corpo responde rápido e vc se pega correndo novamente . 

Você já não sabe onde esta, são ruas e como em um pesadelo, barulhos, gritos bombas, sirenes. Passa um helicóptero em Vôo baixo, FLIR e holofote de busca ligados. Onde eu cruzei a linha da lei ao pedir educação saúde e menos corrupção? Próximo a porta de um prédio avisto alguém. Parece um mendigo, encolhido em um dia de frio, corro ate lá. 

Mal chego perto uma mão esfolada pede." Me ajuda!" Seu rosto roxo, lábio superior inchado um dos dentes da frente pendurado pela pele na boca. "Vem irmão." (agora todo ferido é meu irmão, é meu amigo, sou eu) começamos a andar uns 20 passos depois escuto gritos. "Para filho da puta!" e o trovão

Pareceu um martelo na minha perna, minha coxa parecia ter pego fogo, a ação na hora e de se curvar sobre o ferido que eu estava dando apoio, continuamos andando no passo que dava. Foi o primeiro impacto da noite...algumas quadras depois, um pouco de água (começaram a aparecer os anjos da guarda com água, lenços com vinagre e algumas pessoas começaram a conversar com o rapaz, foi sair do gás, alguns minutos e uma água que ele já estava bem o suficiente para achar o caminho de casa.

Achei um amigo, (você não tem noção do que é achar uma cara conhecida e amiga no meio de uma situação assim) estou indo embora, essa confusão não é para mim. (Esta é a hora que você pensa em valores, em lições e tudo que você já viveu.)

Me empresta a jaqueta de couro? É sua, não se mate! Vai usar o agasalho? "risos" Puta calor!... ele voltou para casa. Agora com meios de resistir melhor. Uma jaqueta um moletom, duas calças. Hora de voltar. Foram horas intermináveis.

Cada pessoa que socorríamos, alvejados pela polícia, que sabia sim em quem estava atirando, vomitei varias vezes por causa do gás, até uma garota que estava com um lenço no rosto me estender a mão e me dar um lenço. "Aqui isso vai te ajudar." corri muito, hora com homens hora com mulheres nos braços, minhas costas receberam vários impactos, suavizados por causa do couro e do moletom, mas doíam na alma. 

O que eu estava fazendo de errado? Depois de ajudar um garoto com um skate que estava encurralado atrás de uma banca de jornal, encontramos um amigo dele. Ai brother, pega estas joelheiras, manda o pau nos porcos. Me causou uma certa surpresa comecei a olhar ao meu redor com mais atenção, algumas pessoas de preto, com escudos improvisados, estavam ajudando, se pondo entre a policia e nos que socorríamos pessoas. 

Estava ajudando uma senhora a sair da zona do gás, quando passou a primeira granada. Um garoto a chutou para um bueiro, e levantou o dedo do meio para o policial que a disparou. Mais uma pessoa fora da area de confronto. Estava correndo para acudir uma pessoa que estava caída quando vieram a segunda e a terceira. 

Estavam mirando em MIM. Dava para ver. Mascarado,desarmado, pagador de impostos em dia com todas as minhas obrigações e sob a mira de lança granadas de gás e tomando tiros de bala de borracha? 

Corri para outro lado, vieram mais duas. Acima uma linha da choque atirando com lança granadas, a esquerda uns 100 mts, vários capacetes brancos, com seus porretes, sem dó no final da rua mais acima, dava para ver os tático móveis, parados com giro flex acesos. 

O corpo finalmente mostrava sinais de fadiga, dor, sentei atrás de uma árvore tentando calcular, para onde correr. Alguém com um lenço preto no rosto, uma camiseta preta, um escudo de madeira improvisada, parou do meu lado. "Comigo!" . 

Entrei atrás dele, deu para ouvir pelo menos 3 impactos no escudo. Vai vai vai...eu corri...corri até as pernas mal aguentarem que eu parasse em pé. Quem me socorreu não sei, mas com certeza foi a diferença entre me recompor para ajudar no dia seguinte, ou ficar no hospital uma semana devido ao tratamento padrão FIFA da policia.

O que eu fiz de errado não sei, nem os jovens que apanharam naquele dia. Vi a policia batendo, vi jovens desconhecidos defendendo o povo com suas "mãos". A cada protesto, a cada novo escândalo, a cada novo desrespeito com o dinheiro público, a máscara branca, foi ficando mais negra. 

Quanto mais a polícia batia em inocentes, que demandam seus direitos que reagem a exploração, que mostram amar mais ao ser humano, do que a um partido, do que a simples posse de algo. Mais negra a máscara ficava, a máscara ficou negra. O sem violência acabou por dar lugar ao principio da reciprocidade.

Continuo a ajudar as pessoas nas manifestações, mas devido a como o Estado me tratou, questiono agora, se ele e suas maneiras , privilégios e postura quanto as reivindicações do povo, realmente me representa. 

Sou pacífico, mas uso a tática Black Bloc, pois a ação é imediata e este governo não me representa. E você ?

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