domingo, 25 de março de 2012

HERMENÊUTICA JURIDICA

A hermenêutica, a "arte da interpretação", era originalmente a teoria e o método de interpretação da Bíblia e de outros textos difíceis. Wilhelm Dilthey a alargou à interpretação de todas as criações e atos humanos, incluindo a história e a interpretação da vida humana. Heidegger, em Ser e Tempo (1927), esboçou uma "interpretação" do ser humano, o ser que, em si mesmo, compreende e interpreta. Sob sua influência, a hermenêutica se tornou um tema central na filosofia continental, gerando várias controvérsias. Ao interpretar algo, desenterramos os pensamentos e as intenções do autor, imaginando-nos em sua posição, ou relacionamo-lo a um todo mais amplo que lhe dá significado? Essa última perspectiva produz um círculo hermenêutico: não podemos compreender o todo (um texto, por exemplo) sem compreender suas partes, ou compreender as partes sem compreender o todo. Heidegger descobriu outro círculo: já que inevitavelmente trazemos pressupostos para o que interpretamos, significa isso que toda interpretação é arbitrária, ou ao menos infinitamente passível de revisão?

A palavra grega hermeneuein significa expressar, explicar, traduzir ou interpretar; hermeneia é interpretação e assim sucessivamente, muitas vezes interpretação de uma mensagem sagrada. Platão chamou os poetas de hermenes — intérpretes — dos deuses. Filósofos interpretaram Homero de forma alegórica. Agostinho interpretou o Velho Testamento como alegoria, usando conceitos neoplatônicos e atribuindo a ascensão da alma ao seu sentido espiritual acima dos sentidos morais e literais do texto. A interpretação alegórica se manteve como padrão durante toda a Idade Média. Com a Reforma, especialmente na Alemanha, a hermeneia se tornou mais explícita e sistemática. A palavra hermeneutica, a "arte da interpretação", apareceu em 1654 no título de uma obra de J.C. Dannhauer, Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum. Protestantes tiveram de interpretar devidamente a Bíblia: recorreram a ela contra o Catolicismo Romano. Rejeitaram a interpretação alegórica e insistiram no sentido exato do texto, esperando resgatar seu significado de distorções introduzidas pela Igreja e pela escolástica. A exegese bíblica não continuou isolada da interpretação de outros textos. Espinosa, no Tractatus theologico-politicus (1670 cap. VII: §94), afirmou que "o padrão da exegese bíblica pode apenas ser a luz da razão comum a tudo". Para Espinosa, a exegese bíblica se tornou um criticismo bíblico, o que envolveu a história. Posto que os relatos de milagres estão aquém dos padrões racionais das crenças, devemos explicar por que os autores da Bíblia e seus contemporâneos acreditavam em milagres.
Johann Ernesti afirmou em seu manual de hermenêutica (1761: 7) que o "sentido verbal da Escritura deve ser determinado do mesmo modo que apuramos o sentido verbal de outros livros". Outros textos que precisavam ser interpretados eram os documentos legais e as obras da antiguidade clássica, e estas disciplinas também contribuíram para a hermenêutica. Avanços significativos foram feitos por dois classicistas: Friedrich Ast e Friedrich August Wolf.  Martin Heidegger também fazia a conexão de questões sobre o significado de textos históricos com questões sobre o sentido da vida. Textos como as cartas Paulo não podem ser compreendidos tendo como base somente os dicionários e as gramáticas; temos de entender as vivências e a situação do autor e de sua audiência. Em qualquer texto, especialmente naqueles que apresentam certa dificuldade, como os de Aristóteles, precisamos investigar nossa "situação hermenêutica", a situação que, modelada pelo passado, impõe sobre nós os pressupostos que trazemos para a compreensão do texto. Estariam corretos os termos em que interpretamos Aristóteles? Se não, como podemos explicar essa degenerescência aparente em nosso aparato conceitual? Essas são questões sobre o presente, e não somente sobre a filosofia contemporânea, mas sobre a vida contemporânea e nossa tendência em interpretar mal o passado. Dessa forma, Heidegger afirma uma "hermenêutica da facticidade, uma interpretação do ser humano ("Dasein") e da vida cotidiana.
Ser e Tempo (1927), de Heidegger, é uma "hermenêutica" em vários sentidos. Explora a própria compreensão e interpretação do Dasein: o Dasein compreende e interpreta, não incidentalmente e esporadicamente, mas essencialmente e constantemente. Ele compreende — conhece seu modo no mundo como um campo para suas próprias atividades. Interpreta os entes no mundo — vê uma mesa como uma mesa, uma cadeira como uma cadeira. Tal compreensão e interpretação são anteriores às ciências. Antes de interpretar um documento, vejo-o como documento; antes de fazer geologia, vejo rochas como rochas. A interpretação envolve pressupostos: para interpretar algo como um livro, devo estar familiarizado com um mundo em que os livros tenham o seu lugar, um mundo de cômodos, mobília, estantes, leitores. O Dasein também se interpreta a si mesmo. Ele se considera, por exemplo, como um sapateiro ou um marujo. Considera sua própria vida de certa maneira. Implicitamente na vida cotidiana, mais explicitamente na filosofia, o Dasein interpreta-se de modo incorreto — como um animal racional, uma substância pensante, ou uma máquina.
Heidegger descreve as características essenciais do Dasein, incluindo a interpretação e a interpretação de si. Posto que os próprios filósofos são o Dasein, eles manifestam as mesmas tendências que o Dasein em geral. Por essa razão, no estudo do Dasein, eles o compreendem e o interpretam, dando continuidade, num plano conceitual e mais elevado, à interpretação de si que é uma característica inevitável de todo o Dasein. Como toda interpretação, a de Heidegger envolve pressupostos: a compreensão preliminar do Dasein que todo o Dasein possui, um certo modo de ver o Dasein (com relação ao seu "ser", em vez de, digamos, suas características biológicas), e conceitos para serem a ele aplicados, como "existência".
A interpretação do Dasein e do ser em geral envolve a interpretação de textos. Posto que o Dasein se interpreta de modo incorreto, devemos remover as camadas de interpretação incorreta para que possamos vê-lo como é. Essas interpretações incorretas, em sua pureza original, ocorrem em filósofos como Kant, Descartes e Aristóteles, por exemplo. Estudamo-los para perceber o que fizeram de correto e onde se perderam, para revelar e avaliar sua influência em nossa situação hermenêutica e, quando apropriado, para nos libertar de sua influência. Heidegger interpreta tais textos principalmente em suas últimas obras, mas Ser e Tempo prefigura esse processo. As palavras não têm significados fixos e unívocos independentemente de seu uso e aplicação. Os significados acumulam-se nas palavras a partir de inter-relações que constituem nosso mundo. Um "martelo" não é simplesmente um "utensílio para bater": o significado da palavra deriva do contexto de bancada, pregos, madeira, oficina e consumidores que constituem o "mundo" do artesão. O que significa uma palavra depende do mundo de seu usuário: por "transporte", "liberdade" ou "educação", Aristóteles não quer dizer o mesmo que nós, dado que vivia num mundo diferente. Para compreender um texto, precisamos ir além dos dicionários e gramáticas para reconstruir o mundo do autor e as "possibilidades" por ele oferecidas.
Posteriormente, Heidegger evitou a palavra "hermenêutica". No entanto, continuou a interpretar textos, tanto poéticos quanto filosóficos, em sua investigação do "sentido do ser". Ele tergiversou com relação ao fato de podermos ou não interpretar um texto definitivamente. Nossas interpretações do passado estão vinculadas à nossa situação hermenêutica, e abertas a revisão futura. Ser e Tempo sugere que o significado de um evento (ou de uma vida), se não de um texto, é o que ele significa para nós/mim, dependendo da significância a ele conferida por nós/mim através de (e nas) nossas/minhas decisões para o futuro. Conversamente, afirma — apesar de toda a sua "violência" perante o texto literal — pôr a descoberto o significado de Aristóteles, por exemplo, sem qualquer alusão ao facto de a sua própria interpretação poder ser vista mais tarde, com igual justificação, como mais uma interpretação incorreta. De todo modo, o círculo hermenêutico agora abarca intérpretes e seus pressupostos, bem como o texto, o autor e sua cultura. A compreensão prévia do todo, que Schleiermacher e Dilthey viam como uma exigência para a interpretação da parte, só pode surgir a partir dos próprios pressupostos do intérprete. Estes, entretanto, devem ser revisadas no decorrer da interpretação.
A hermenêutica de Heidegger tem sido explorada por Bultmann, Ricoeur e Derrida, mas seu seguidor mais próximo é Gadamer. Gadamer também afirma que voltamos a captar o contexto em que um autor escreveu tendo em consideração a audiência pretendida e as questões a que o autor respondia. A interpretação pressupõe uma "pré-compreensão" historicamente determinada, um "horizonte"; envolve uma "fusão de horizontes", os horizontes do passado e do presente. Não podemos ter a certeza de que a nossa interpretação é correta ou melhor do que interpretações anteriores. A nossa interpretação, e o nosso veredicto sobre interpretações anteriores, está sujeita a revisão futura. Ao interpretar um texto do passado, investigamos nossa pré-compreensão tanto quanto o texto em si.
Com Gadamer e outros, a hermenêutica retornou às suas raízes antigas e medievais. Não mais perguntamos por aquilo que um autor queria dizer com um texto, mas o que o texto nos quer dizer a nós, ou para nós. A justificação medieval disso é o fato de que Deus, o autor último do texto, pode inscrevê-lo em qualquer sentido que escolher, seja alegórico ou anacrônico. Os modernos justificam isso através do apelo à não existência, indeterminação, inacessibilidade ou irrelevância das intenções do autor, ou do apelo aos pressupostos historicamente variáveis da interpretação. O alargamento de Dilthey da hermenêutica às vivências e eventos históricos dá suporte a essa tendência. O "significado" da Revolução Francesa não pode ser o que seu(s) autor(es) quis(eram) dizer com ela, ou ainda o que significou para a audiência que lhe era contemporânea. É o que ela "quer dizer" para as audiências posteriores e sucessivas, ou mesmo o que fazem dela por seus próprios planos e decisões. Poucos argumentam, entretanto, que a interpretação de um texto está inteiramente relacionada com o capricho do intérprete. Isso subverteria a comunicabilidade do ceticismo dos hermeneutas ao permitir que os oponentes interpretem a sua expressão da maneira como bem quiserem.