domingo, 21 de janeiro de 2018

Transação penal virou suspensão condicional da ação. Os crimes de 1,99 e a Súmula Vinculante 35 do Supremo Tribunal Federal

Por Thiago M. Minagé e Alexandre Morais Da Rosa 
É verdade, os motivos para se indignar podem parecer menos nítidos, ou o mundo pode parecer complexo demais. Quem comanda, quem decide? Nem sempre é fácil distinguir entre todas as correntes que nos governam. Não lidamos mais com uma pequena elite cujas ações entendemos claramente. É um vasto mundo, no qual sentimos bem em que medida é interdependente. Vivemos em uma interconectividade que nunca existiu antes. Mas esse mundo há coisas insuportáveis. Para vê-las é preciso olhar bastante, procurar.
Stéphane Hessel – Indignai-vos
O Supremo Tribunal Federal (STF) funciona como se fosse a autoridade certificadora do direito válido. Resolvendo o problema do fechamento do sistema jurídico lido a partir do positivismo – de Kelsen até Hart – aponta o lugar de quem diz por último o Direito. Pode-se dizer que isso acontece em diversos lugares do mundo, entretanto, podemos saber quais os fundamentos enfrentados e, quer pela distinção do caso ou pela existência de outros argumentos, objetar (Maurício Ramires). No Direito Brasileiro substituímos a racionalidade da decisão pela elaboração de uma súmula que ocupa o lugar da lei. Diretamente: o STF legisla em caráter definitivo. Uns aplaudem. É eficiente.
A fertilidade imaginária e o autoritarismo decorrente da incorporação do poder são capazes de criar situações, completamente carente de qualquer explicação técnica, mesmo por que se alguma técnica existisse no contexto seria mais fácil de entender ou explicar, mas sinceramente, não dá para entender. A atividade legislativa revestida de judicial encontra na SV n. 35 o paroxismo do caos: “A homologação da transação penal não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante o oferecimento da denúncia.”
Surgido na lógica de aparentemente despenalizar – é uma falácia – os Juizados Especais Criminais abrangem os crimes de menor potencial ofensivo, cuja pena não ultrapassa a 2 (dois) anos e, por isso, caso preenchidas as condições do art. 76 da Lei n. 9.099/95, pode-se realizar um “acordo”, sem assunção de culpa, mas com penalização que não pode ser convertida. Só há transação se os requisitos estiverem cumpridos e, lembre-se, trata-se de tipos penais de 1,99, ou seja, que antes dela, na sua imensa maioria, já tinham caído em dessuetude. Foram praticamente “repristinados” pelos Juizados, como bem criticam Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Salo de Carvalho, dentre outros. Sem adentrar ao mérito de sua constitucionalidade (Geraldo Prado e Nereu Giacomolli), fixam-se os limites da transação por sentença. Em caso de descumprimento não havia possibilidade de conversão e, na maioria dos Tribunais, utilizando-se do “jeitinho brasileiro”, condicionava-se a homologação para após o cumprimento. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha entendendo que a homologação fazia coisa julgada material e formal. Mudou de posicionamento em face das decisões do STF (RHC 29.435/RJ). O STJ indicava que uma vez homologada e descumprida nada poderia ser feito.
Daí que inventaram a insubsistência da decisão homologatória por descumprimento. A inteligente saída, iniciada em São Paulo na década de 90, desconsidera o devido processo legal substancial e promove, no campo penal, a concepção da decisão própria dos procedimentos de jurisdição voluntária ou dita graciosa. Isso porque apresenta-se como função meramente administrativa, sem conteúdo decisório, em que a intervenção do Estado é meramente formal e chanceladora de direitos privados (?), mas aplicada no campo penal. Descumprida a transação voltam as partes ao status quo ante, isto é, o Ministério pode apresentar denúncia e a ação penal ir adiante.
A decisão do STF, portanto, aplicou a lógica da jurisdição voluntária e autorizou o juiz que homologou a transação penal revogar a sua própria decisão (?), sob o argumento de que não fere o devido processo legal, mas esconde a sanha punitivista. A Suprema Corte, aqui, errou, naquilo que Lenio Streck chamou de Fator Júlia Roberts (leia aqui). No fundo, o STF criou a Suspensão Condicional da Ação ao permitir o afastamento da coisa julgada in mala partem. Não existindo coisa julgada e, portanto, sem efeitos a decisão, ainda que se possa discutir o art. 110, parágrafo 1º, do CP, também não há interrupção da prescrição. Ou só é insubsistente para o autor do fato? A prescrição é a externalidade que deve ser verificada em cada situação.
Essa crítica não é preocupada em “arredondar” o discurso do positivismo jurídico e propõe que se faça a pergunta certa no campo penal: há sentença formal no campo penal? A resposta do STF não se coaduna com os primados do devido processo legal substancial e cria a nossa jabuticaba: a suspensão condicional da ação. Precisamos conversar sobre a Súmula Vinculante n. 35 e, quem sabe, convencer o STF a abandonar o narcisismo de quem fala por último, no caso, errado. Afirmamos que a sentença faz coisa julgada material e formal. Vamos continuar dizendo isso. Quem sabe um dia nos ouçam. Não faz sentido procurar punir sem fim os crimes de 1.99.
Infelizmente o STF ainda se coloca na posição de juiz boca da lei agindo como se estivesse mandando e desmandando na vida das pessoas situação essa extremamente criticada pela doutrina (Lenio Streck),no entanto, sem qualquer pudor ou preocupação das consequências de suas decisões, primando exageradamente por um utilitarismo exagerado e destruidor (Nilo Batista).


quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Incoerência ou Falta de Conhecimento?

Esta foto [não vou postar] foi feita nesse final de semana, em Natal-RN, na inauguração de um outdoor que demonstra apoio ao deputado Jair Bolsonaro.
Daí o cara aparece usando uma camisa com a imagem de um defensor da idéia que "Bandido bom é bandido morto", logo acima do termo "Thug Life", que em português significa "Vida Bandida".
Até aí, tudo normal, tendo em vista que o bom senso e a coerência não condizem com o discurso de grande parte dos apoiadores do homenageado em questão.
Mas não custa nada esclarecer que o "Thug Life" foi um movimento social fundado pelo rapper Tupac Shakur, em 1992, na Califórnia, que dentre outras 25 coisas, pregava em seus mandamentos, a independência dos moradores dos guetos negros dos EUA em relação às forças policiais, que oprimem seu povo há séculos.
Foi esse movimento que inspirou aqui no Brasil o estilo de "Vida Loka", difundido pelas favelas de todo o país através das letras dos Racionais MC's, a partir de 2002.
A idéia que fundamenta os versos da "Vida Loka" remete ao ladrão perdoado por Jesus no momento de sua crucificação. Já o disco "All Eyez On Me", considerado a obra prima de Tupac, lançado meses antes de seu assassinato e fala sobre o "Thug Life Style", traz a faixa "Only God Can Judge Me" cuja tradução do título "Só Deus pode me julgar" é autoexplicativa.
Já a imagem, não! É impossível relacionar Jair Bolsonaro ao "Thug Life". Mesmo que se trate do uso do termo na forma de um meme. Pois os memes são artifícios que deveriam passar longe de discursos de ódio. A finalidade original do meme é aliviar as tensões cotidianas adultas através de mensagens que nos tornem mais tolerantes. Mais crianças, no sentido mais puro da palavra, nem que seja por um breve momento.
O "T.H.U.G L.I.F.E." idealizado por Tupac também traz uma mensagem inserida em siglas, que, traduzida para o português, diz "O ódio que você passa para as crianças fode todo mundo.



Autoria: texto anônimo (veracidade identificada).

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Sr. Policial: me obrigaram a guardar droga lá em casa com ameaça de morte. E agora?

Por Alexandre Morais da Rosa e Thiago Minagé
Este artigo é sobre o caso do sujeito que denunciou aos policiais que os “traficantes” o obrigaram a guardar droga em sua casa e foi preso em flagrante por tráfico. A vida em zonas de exclusão, como se um dia tivessem sido incluídas, é banhada por possíveis violências desprovidas de intervenção estatal adequada. No caso (hipotético?) que narramos o sujeito se dirigiu até uma viatura policial e informou que possuía família, filhos e que estava sendo obrigado a guardar três quilos de droga em sua residência. Está com receio de ser morto e pergunta como proceder.
Os policiais dirigem-se até a casa do sujeito, por sua indicação, ocasião em que mostra aos policiais onde está a droga. Resultado, preso em flagrante por violação do art. 33 da Lei de Drogas. Inacreditavelmente o flagrante é lavrado, afinal de contas, dizem, “guardar” droga é crime. Remetido ao Juízo, a prisão é mantida e, posteriormente, denunciado. O nosso processo hipotético ainda não terminou. Será que não se percebe o contexto da descoberta da droga, os limites da culpabilidade do acusado? Enfim, não era nem para estar preso. Mas corre o risco de ser condenado pela lógica objetiva que permeia certa parcela do Judiciário.
Privar a liberdade de um sujeito tornou-se a melhor e mais efetiva forma de imposição e consequentemente submissão ao exercício do poder estatal, como verdadeiro controle populacional das pessoas e classes hierarquizadas. Basta observar a forma pela qual os atos prisionais são praticados diariamente pelas agências executoras dos processos de criminalização.
A prisão em flagrante delito é amplamente criticada, devido sua falta de judicialização e até mesmo pela precariedade na regulamentação, pois como se pode observar, o CPP define o que é, mas deixa ao arbítrio dos executores a avaliação de sua pertinência ou não. Eis o momento crucial dessa crítica. Sabemos que a prisão em flagrante delito devido a fragilidade e precariedade sequer pode ser considerada uma medida cautelar, na verdade trata-se de uma verdadeira medida pré-cautelar, por isso a importância da observância da conduta criminosa no momento da prática do ato.
Tal circunstância se justifica pelo fato da prisão em flagrante ser o único método de privação da liberdade que dispensa uma análise prévia de uma autoridade judicial. Não que isso seja a certeza do acerto na decisão, mas, de fato, reduz a possibilidade de erro. Ao menos deveria ser assim.
Por consequência, toda vez que ocorrer uma prisão em flagrante, necessariamente deverá a autoridade judicial ser comunicada imediatamente no prazo de até 24 horas, para analisar a validade do ato e realizar audiência de custódia, consoante Resolução n. 213 do CNJ aqui. Tudo isso existe para evitar maiores violações de direitos de quem é preso indevidamente e banir arbitrariedades por parte da autoridade executora. Mas o problema se agrava quando a manifestação judicial acaba por corroborar as referidas arbitrariedades e se tornar apenas mais um a violar direitos e garantias individuais.
Na nossa situação hipotética estamos falando de um âmbito hostil, de exclusão, denominado “favela”, no qual o sujeito já traz consigo, para muitos agentes de controle, a presunção e o estereótipo “criminoso”. Mesmo quando busca auxílio do Estado para enfim ser visto e amparado, os olhos viciados o transformam em principal ator da cena criminosa, ou seja, preto, pobre favelado e acusado de tráfico. O verdadeiro inimigo criado que ataca toda a sociedade. O Bode Expiatório (René Girard) da vez.
Esse contexto se dá quando, na rua, melhor, na pista (gíria carioca), ao alertar que estão usando seu barraco como depósito de drogas mediante ameaças e agressões, tendo não só sua vida, como dos demais familiares em perigo, vê-se agora, preso, porque simplesmente sua conduta foi considerada criminosa, tendo o enquadramento perfeito da conduta no traficante.
A prisão em flagrante por se tratar de mecanismo pré-cautelar, inegavelmente se refere à medida constritiva da liberdade mais praticada no dia a dia policial. Por isso a necessidade de sua legalidade ser considerada rigorosamente nos limites legais, formal e materialmente. Assim, devido ao próprio caráter da prisão em flagrante somente deverá ocorrer quando o fato delituoso apresentar-se evidente, claro, motivo pelo qual se justifica a contenção. Deveria-se apreender a droga e investigar, mas não confundir as figuras.
Mas diante do narrado, há dolo do agente na denúncia formulada? Na nossa situação hipotética o agente continua preso, invertendo-se a carga probatória, afinal irão querer que o acusado prove que foi coagido, talvez dizendo-se na decisão condenatória: “a versão do acusado restou isolada nos autos, já que deixou de arrolar prova consistente de que teria sido coagido a guardar a droga.
O deslizamento imaginário não encontra limites na lógica Talibã do combate as drogas, diria Thiago Fabres de Carvalho.
Um abraço em quem nos mandou a história e sorte ao acusado preso.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

RE-COMEÇAR TAL COMO RE-SIGNIFICAR O APREENDIDO COM O PASSAR DO TEMPO.

Por que retomar o blog? Talvez pela necessidade do dinamismo na propagação de informações e ideias com um toque de tradicionalismo.

Necessário o uso de todas as ferramentas disponíveis para a interlocução.

Compreender o processo penal sob a égide de um Estado Democrático de Direito, requer, não só, uma releitura crítica de institutos já consolidados em um modelo de sistema específico, como também abandona-los quando deixam de possuir legitimidade. Deve-se compreender que o papel a ser desempenhado pelas partes através do contraditório é fundamental e jamais será possível sem o amparo da oralidade [não confundir com oratória] e publicidade [acesso irrestrito às informações em detrimento dos métodos ocultos] dos atos. Na busca de um controle da observância das garantias processuais, necessário estabelecer o contraditório como verdadeiro garantidor das respectivas garantias processuais [Ferrajoli]. Para tanto, somente haverá respeito às garantias processuais, quando, toda e qualquer produção probatória, for desenvolvida publicamente e de forma oral [excluindo definitivamente a burocracia escrita], mediante rito processual previamente estabelecido na lei. Para tanto, o presente trabalho [série de peqeunos textos sobre o tema] começa por uma análise do sistema inquisitivo e sua permanente interferência em nosso processo penal em vigor, propondo uma superação do sistema atual, que é o acusatório, tendo em vista sua insuficiência na contenção de interferências inquisitivas, propondo uma nova visão de sistema como forma de aperfeiçoamento do então vigente, tendo como premissa a mudança do princípio unificador de forma a valorizar a oralidade e publicidade dos atos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Se não está na prova da OAB, não está no mundo

Odefredus, professor de Direito Medieval, segundo Harold Berman, apresentava o Digesto como livro sagrado dos juristas e, assim, havia um método próprio de ensinar:
“Em primeiro lugar, eu fornecerei sínteses de cada um dos títulos — do Digesto — antes de proceder ao texto. Depois, eu darei exemplos o mais clara e explicitamente que puder, das regras individuais — contidas no título. Em terceiro lugar, eu repetirei brevemente o texto visando corrigi-lo. Em quarto lugar, eu repetirei sinteticamente os conteúdos dos exemplos — das regras. Em quinto lugar, eu resolverei as contradições, adicionando princípios gerais comumente denominados brocardia e distinções de problemas úteis e sutis, com a sua respectiva solução, se assim me permitir a Divina Providência.”
Embora possa aparentar ser uma descrição histórica, na verdade, esse modelo permanece sendo o padrão nas escolas de Direito espalhadas no país, com um agravante. Muitos alunos perguntam: cai na prova da OAB?
Assim, esse texto procura dialogar, no campo do processo e direito penal, com base na proposta de Maíra Rocha Machado e Marta Rodrigues de Assis Machado, ou seja, do ensino conjunto do Direito e do Processo Penal no contexto contemporâneo, sobre as possibilidades de superação do ensino compartimentado e “oabetizado”, desde uma perspectiva que possa significar um saber transversal e, também, fora da pedagogia padrão. Aliás, essa a pretensão do meu Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, em segunda e ampliadíssima edição (2014, Lumen Juris).
Roberto Lyra Filho indagava-se, na década de 1980, sobre as (im)possibilidades do Ensino do Direito, especialmente no ambiente de pouca atmosfera democrática que permeava o Brasil. Passados mais de 30 anos da inquietação, pode-se apontar que na grande maioria das escolas de Direito a manutenção do modelo medieval de ensino permanece, “como se” as questões sociais, a nova ordem constitucional, os influxos do neoliberalismo (eficientismo penal) não fizessem tensão, a saber, “como se” o Direito Penal continuasse mera disciplina de tipos penais e o Processo Penal, sua operacionalização prática, desconsiderando-se, ademais, a criminologia. Luis Alberto Warat, na mesma época, apresentava o panorama da mesmice, bem assim a necessidade de superação, quem sabe carnavalizando o direito ou apresentando uma viagem inesperada. A discussão continua hoje, na UFSC, por exemplo, com Horácio Wanderlei Rodrigues e Edmundo Lima.
A dissidência proposta
A dissidência proposta parte da necessidade de se romper com a sedução do especialista e do saber instituído. Não raro quem pretende escrever qualquer texto sobre processo penal busca fazer revisão bibliográfica e estabelecer o saber monolítico assentado em premissas incontestáveis. É justamente ai que apresento a dissidência. Os fundamentos teóricos em que o Processo Penal serão problematizados e não somente apresentados e/ou rejeitados, lendo-se a partir da teoria dos jogos adaptada ao Processo Penal. Busca-se ampliar criativamente as possibilidades de compreensão do Processo Penal. Daí que a estrutura do ensino jurídico não pode ser linear, precisa dialogar com a tradição e sair da mesmice, para além da prova da OAB, a qual nos últimos tempos, é bizarra, apontam Cézar Bitencourt e Lenio Streck (ver aqui).

Antes da viragem linguística acontecida em meados do século passado, a maneira de pensar do mundo ocidental era baseado na possibilidade de se encontrar essências. Daí que a hermêneutica era pensada como adequação do mundo à razão, como se as coisas tivessem uma essência — elas existissem na natureza — e o sujeito pudesse descobrir o verdadeiro sentido das coisas. Assim se construía, rigorosamente, pelo paradigma científico e pela geometria euclidiana, o mundo das ciências. Talvez por aí se possa ver o problema que nos aguarda. Os manuais de Direito Penal e Processo Penal, na sua imensa maioria, ouso dizer, servem para enganar. São o efeito semblante do que poderia ser.
O Processo Penal sofre, assim, de um grande déficit, dado que procura, ainda, estabelecer as bases de seu funcionamento em face de coordenadas, ou seja, de um mapa que não se confunde com o território. A metáfora, usada por muitos, mostra que não se pode confundir um mapa do lugar com o seu real. Sempre há nuances, desvios, mudanças de rumo, erros e surpresas. Acrescente-se a isso que com o fenômeno da mundialização do Direito, as diversas tradições — para ficarmos apenas entre civil law e common Law —, implicaram, nos últimos tempos, na importação de diversos institutos pensados com base em fundamentos teóricos diferenciados, cabendo destacar a delação premiada, leniência, justiça restaurativa, agente infiltrado, compreensão de processo, etc. Nesse quadro, portanto, as situações de perplexidade são cada vez maiores.
Superando o Direito Processual do Conforto
A sedução pela simplicidade faz com que muitos se abracem nos resumos que prometem o Direito fácil, esquematizado, simplificado e tenho lá minhas desconfianças de que seja assim mesmo, até porque se fosse tão simples, esquematizado ou fácil, não precisaríamos de tantas publicações. O caminho é mais contingente, longo e complexo. Quem atua na realidade do Processo Penal sabe que esses manuais pouco ajudam no momento do jogo processual e o direito do conforto precisa ser superado.

De plano afirmo que não existe lugar fácil no Processo Penal, nem que se pode seguir um check-listprocessual, mas sim que atividade processual, como jogo, exige preparação, estudo, perspicácia, paciência, estratégia e tática. Precisamos saber lidar com as nossas limitações, sobre os impasses e paradoxos, para somente então podermos nos posicionar. Sobrará um resto de sorte, sempre. Não será, contudo, uma surpresa, dado que poderemos antecipar as jogadas, as táticas, enfim, realinhar a estratégia e funcionar melhor. Em vez de esperar o que irá sair da cabeça do juiz, do jogador, possamos gerar expectativas factíveis de comportamento. Por um lado se terá maior responsabilidade e, por outro, as surpresas podem ser mitigadas, aumentando, todavia, a responsabilidade do jogador.
Exerço a função de juiz de Direito estadual — há vários anos em uma Vara Criminal —, bem como a de professor adjunto de Processo Penal na UFSC. O desconforto e a angústia decorrem do fato de que o ensino do direito acabou se focando no estudo para prova da OAB. E a prova da OAB não prepara para o mundo da vida. A disciplina — Processo Penal —, embora seja obrigatória, deveria ser uma fusão de horizontes entre o que se passa no mundo forense e a teoria do Direito. E o professor encontra-se num dilema. Se procura dotar os acadêmicos de meios mínimos para poderem pensar, não raro, é acusado de querer dar aula no mestrado/doutorado. Por outro lado, caso seja uma decoreba da legislação, deixa de ser professor universitário para se tornar professor de cursinho preparatório.
A propaganda das faculdades/universidades é: tantos por cento de aprovação na prova da OAB, fenômeno que transformou a graduação em um curso preparatório. É a pressão do mercado. Resistir a tudo isso é complicado. O que aparece, muitas vezes, depois, são sujeitos que precisam descobrir o que a Jane fez com o carro, sendo que o único que poderia resolver a questão é o jurista Tarzan, o que sempre salva a Jane. Mas o Tarzan mora na fantasia. A resposta oficial era equivocada e foi sustentada pelo Conselho Federal da OAB de maneira inacreditável. Quem sabe possamos fazer a prova da OAB no primeiro ano do curso e depois estudar direito. Vivemos a fase da oabtização dos cursos de Direito (ver aqui). Uma última advertência, com L.F. Barros, qualquer dessemelhança com a bizarra realidade deve-se, exclusivamente, à incapacidade descritiva do autor.

By Alexandre Morais Da Rosa

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O pensamento da sociedade precisa mudar


Sinceramente, cada dia que passa, cada debate que presencio e cada manifestação de pensamento que observo, concordo PLENAMENTE com o conteúdo da última entrevista do Luiz Eduardo Soares - segue apenas um trecho, da opinião de um jovem, que reflete bem o pensamento legitimador de arbitrariedades e violações de direitos por parte do Estado. 


"... Polícia boa é a polícia que é respeitada. Se a PM não é respeitada com atitudes boas, que seja respeitada por medo."

“A sociedade terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial”

A desmilitarização da polícia, uma das bandeiras das jornadas de junho, sempre foi uma das principais de Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e antropólogo.
Nesta entrevista, o autor de mais de 20 livros, entre eles Tudo ou Nada, Elite da Tropa eCabeça de Porco, explica o motivo de sua defesa, e aponta que este é apenas o primeiro passo para o caminho árduo de construção de uma sociedade “efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos”. Luiz Eduardo foi um dos principais elaboradores da PEC-51 – recentemente apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ) – que visa, segundo ele, reformar o modelo policial.
Nós temos uma polícia e um corpo de bombeiros que são militar. Você há muito tempo defende a desmilitarização. Por quê?
Luiz Eduardo Soares – Considero a desmilitarização das polícias indispensável e a dos bombeiros absolutamente conveniente, ainda que essa mudança não seja suficiente. Mesmo porque nossas polícias civis não têm menos problemas do que as militares. Em primeiro lugar,
é preciso saber o que significa, para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa obrigá-la a copiar a organização do Exército, do qual ela é considerada força reserva. O melhor  formato organizacional é aquele que melhor permite à instituição cumprir suas finalidades.
Finalidades diferentes requerem estruturas organizacionais distintas. Portanto, só faria sentido reproduzir na polícia o formato do Exército se as finalidades de ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o que diz a Constituição. O objetivo do Exército é defender o território e a soberania nacionais. Para cumprir essa função, tem de organizar-se para realizar o pronto emprego, ou seja, mobilizar grandes contingentes humanos e materiais com máxima celeridade e rigorosa observância das ordens proferidas pelo comando. Precisa preparar-se para, no limite, fazer a guerra. Pronto emprego exige centralização decisória, hierarquia rígida e estrutura fortemente verticalizada. Nada disso se aplica à Polícia Militar. Seu papel é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força. Segurança é um bem público que deve ser provido universalmente e com equidade pelos profissionais incumbidos de prestar esse serviço à cidadania. Os confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança poderia haver com o Exército, ainda que mesmo nesses casos as diferenças sejam marcantes. Mas eles correspondem a menos de 1% das atividades que envolvem as PMs. A imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva são melhor resolvidos com a adoção de estratégias incompatíveis com a estrutura organizacional militar. Refiro-me ao policiamento comunitário, os nomes variam conforme o país.
E em que sentido o policiamento comunitário distingue-se das ações militares?
Essa metodologia é inteiramente distinta do “pronto emprego” e implica o seguinte: o ou a policial na rua não se limita a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento ditado pelo estado maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele ou ela é a profissional responsável por agir como gestora local da segurança pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e altamente qualificada: diagnosticar os problemas e identificar as prioridades, em diálogo com a comunidade, mas sem reproduzir seus preconceitos; planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do poder público, na perspectiva de prevenir e contando com o auxílio da comunidade, o que se obtém respeitando-a. Para que haja esse tipo de atuação, é imprescindível valorizar quem atua na ponta, dotando essa pessoa dos meios de comunicação para convocar apoio e de autoridade para decidir. Há sempre supervisão e interconexão, mas é preciso que haja, sobretudo, autonomia para a criatividade e a adaptação plástica a circunstâncias que tendem a ser específicas aos locais e aos momentos. Qualquer profissional que atua na ponta, sensível à complexidade da segurança pública, ao caráter multidimensional dos problemas e das soluções, ou seja, qualquer policial que atue como gestor ou gestora local da segurança pública, deve dialogar, evitar a judicialização sempre que possível, mediar conflitos, orientar-se pela prevenção e buscar acima de tudo garantir os direitos dos cidadãos. Dependendo do tipo de problema, mais importante do que uma prisão e uma abordagem posterior ao evento problemático, pode ser muito mais efetivo iluminar e limpar uma praça, e estimular sua ocupação pela comunidade e pelo poder público, via secretarias de cultura e esportes. Os exemplos são inúmeros e cotidianos. Esse é o espírito do trabalho preventivo a serviço dos cidadãos, garantindo direitos. Esse é o método que já se provou superior. Mas tudo isso requer uma organização horizontal, descentralizada e flexível. Justamente o inverso da estrutura militar. ‘E o controle interno?’, alguém arguiria.
Engana-se quem supõe que a adoção de um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional seja necessária. Se isso funcionasse, nossas polícias seriam campeãs mundiais de honestidade e respeito aos direitos humanos. Eficazes são o sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de sentir-se valorizado pela sociedade. Além de tudo, corporações militares tendem a ensejar culturas belicistas, cujo eixo é a ideia de que a luta se dá contra o inimigo. Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro. Uma polícia ostensiva preventiva para a democracia tem de cultuar a ideia de serviço público com vocação igualitária e radicalmente avessa ao racismo.
A militarização da polícia justifica o seu comportamento? Uma vez desmilitarizada, qual seria o passo seguinte, uma vez que a corporação será a mesma?
Como disse, respondendo à primeira pergunta, desmilitarizar é apenas uma das mudanças indispensáveis. Isolada, cada uma delas será insuficiente. E não nos iludamos: toda reforma institucional da segurança pública será somente um passo numa caminhada mais longa e difícil, rumo à construção de uma sociedade efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos, na qual a justiça mereça o nome que tem. A sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial, aplaudindo execuções, elegendo políticos que defendem o direito penal máximo e governos que acionam a violência do Estado. As transformações, um dia, terão de incluir a legalização das drogas, que considero uma mudança fundamental. No momento, contudo, o que está em questão, e com máxima urgência, é salvar jovens negros e pobres do genocídio, é acabar com as execuções extra-judiciais, as torturas, a criminalização dos pobres e negros, é reduzir o número inacreditável de crimes letais intencionais, é suspender o processo de encarceramento voraz, que atinge exclusivamente as camadas sociais prejudicadas pelas desigualdades brasileiras, é sustar a aplicação seletiva das leis, que vem se dando em benefício das classes sociais superiores, dos brancos, dos moradores dos bairros afluentes de nossas cidades. Portanto, nada de idealizações ao avaliar as reformas propostas. O que não significa que cada passo não seja de grande relevância e mereça todo empenho de quem se sensibiliza com a tragédia nacional, nessa área, tão decisiva e negligenciada.
Historicamente, tivemos momentos em que a luta pela desmilitarização da polícia aparece, como na promulgação da Constituição de 1988. Por que ela não aconteceu?
Não houve comprometimento suficiente das forças mais democráticas, a sociedade não se mobilizou, os lobbies corporativistas das camadas superiores das polícias se mobilizaram, as forças conservadoras se uniram e funcionou a chantagem dos antigos líderes da ditadura, em declínio, mas ainda ativos. Nas jornadas de junho de 2013, e em seus desdobramentos, a brutalidade policial, que era e continua a ser cotidiana nos territórios populares, chegou à classe média e chocou segmentos da sociedade que antes ignoravam essa realidade ou lhe eram indiferentes. A esperança reside na continuidade dos movimentos sociais, que adquiriram novo ímpeto, e em sua capacidade de pautar esse debate e incluí-lo na agenda política. Não vai ser fácil. Mas tampouco será impossível. Abriu-se para nós, pela primeira vez, uma temporada de frestas.
Existem diversos projetos em tramitação para a desmilitarização da polícia: um proposto pelo senador Blairo Maggi, outro do ex-deputado Celso Russomanno, e o mais recente proposto pelo senador Lindbergh Farias, sob sua consultoria, a chamada PEC-51. No que eles se diferenciam?
Há mais de 170 projetos no Congresso Nacional propondo a reforma do artigo 144 da Constituição. Vários incluem a desmilitarização. Nenhuma proposta de emenda constitucional é tão ousada e completa quanto a PEC-51. Nenhuma incorporou 25 anos de militância, experiência, debate e pesquisas, ouvindo profissionais das polícias e da universidade, operadores da justiça e protagonistas dos movimentos sociais, e buscando o denominador comum. Isso não significa unanimidade. Há interesses contrariados e haverá resistências corporativistas, assim como posições ideológicas em oposição. Entretanto, o envolvimento de muitos movimentos, inclusive de policiais, já indica seu potencial para construir um consenso mínimo e sensibilizar a sociedade. 70% dos profissionais da segurança querem a mudança, como pesquisa de que participei demonstrou, em 2010. Não necessariamente querem a mesma mudança, mas o reconhecimento da falência do modelo atual é, em si mesmo, significativo.
Você ajudou a formular a PEC –51. Como foi isso e quais são as expectativas?
A PEC-51 visa reformar não apenas as PMs, desmilitarizando-as, mas o próprio modelo policial, atualmente baseado na divisão do ciclo do trabalho policial: uma polícia investiga, outra faz o trabalho ostensivo preventivo. Pretende também instituir carreira única em cada polícia e transferir aos estados o poder de escolher o modelo que melhor atenda suas peculiaridades, desde que as diretrizes gerais sejam respeitadas. Hoje, em cada estado, as duas polícias, civis e militares, na verdade são quatro instituições ou universos sociais e profissionais distintos, porque há a polícia militar dos oficiais e dos não oficiais (as praças), a polícia civil dos delegados e dos não-delegados como, por exemplo, os agentes, detetives, inspetores, escrivães etc. A PEC propõe que o ciclo de trabalho policial seja respeitado e cumprido em sua integralidade, por toda instituição policial. Ou seja, toda polícia deve investigar e prevenir.
Propõe também a carreira única no interior de cada instituição policial. E propõe que toda polícia seja civil. A transição para o novo modelo, caracterizado pelo ciclo completo, a carreira única e a desmilitarização, uma vez aprovada a PEC, dar-se ia ao longo de muitos anos, respeitando-se todo direito adquirido de todos os trabalhadores policiais, inclusive, é claro, dos que hoje são militares. O processo seria conduzido pelos estados, que criariam suas novas polícias de acordo com suas necessidades. A realidade do Acre é diferente da de São Paulo, por exemplo. A transição seria negociada e levada a cabo com transparência e acompanhamento da sociedade. As polícias seriam formadas pelo critério territorial ou de tipo criminal, ou por combinações de ambos. Um exemplo poderia ser o seguinte: o estado poderia criar polícias sempre de ciclo completo, carreira única e civis – municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo, previstos na Lei nº 9.099; uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra, por exemplo, os homicídios. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos.

http://revistaforum.com.br/blog/2014/01/a-sociedade-tera-de-mudar-porque-e-ela-quem-autoriza-hoje-a-barbarie-policial/